Gravura Brasileira

Ana Elisa Dias Baptista

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Memento vitae


Henrique Marques-Samyn faz seu segundo ensaio de estudo sobre a gravura brasileira contemporânea

Por Henrique Marques-Samyn

A obra de Ana Elisa Dias Baptista apresenta uma riqueza que tem sido justamente reconhecida pelos que sobre ela se debruçam: seu tratamento da questão da finitude, suas referências às práticas colecionistas e seu singular senso de observação da natureza são qualidades de seu trabalho recorrentemente mencionadas; de resto, há indubitavelmente vários aspectos de sua obra que ainda emergirão em reflexões futuras. Por ora, sendo necessário eleger apenas uma perspectiva para consideração devido ao restrito escopo deste ensaio, pode-se partir da seguinte indagação: o que significa o ato mesmo de se registrar a decomposição orgânica numa matriz gráfica, gesto em que consiste parte considerável da produção da artista?

De um lado, seria possível interpretar as obras resultantes desse processo como algo derivado do motivo da vanitas, ou seja, como criações cujo principal intuito é reafirmar a efemeridade do existente; por outro lado, seria possível vislumbrar um tratamento análogo ao memento mori, conquanto não se trate aqui de representações particularmente relacionadas ao corpo humano, mas de animais domésticos ou particularmente afeitos à coexistência com o homem. Isso implicaria, evidentemente, a percepção de um sentido moralizante, de tintas cristãs, na obra de Ana Elisa, vinculado ao resgate das referidas tradições artísticas. Porque somos de carne, nosso tempo é breve; urge meditar sobre nossa efemeridade, refletir sobre o mundo vindouro. Como afirma uma canção medieval, ad mortem festinamus, peccare desistamus – apressamo-nos para a morte, abandonemos o pecado.


Não me parece, contudo, que seja isso o que está em questão na obra de Ana Elisa Dias Baptista, por duas razões principais: primeiro, pelo apego à minúcia e aos detalhes nela perceptível, tributário de um olhar naturalista em que é possível vislumbrar menos o apelo patético típico da vanitas e do memento mori do que um profundo fascínio pela mortalidade como um fenômeno presente na natureza; segundo, porque a iconografia constante das obras inscritas nessas tradições – elementos cuja função é representar as vãs conquistas da humanidade, como livros, símbolo da falsa sabedoria, ou espelhos, ícones da frívola vaidade – não ocorre de forma análoga nas gravuras de Ana Elisa. Aqui, a morte é percebida antes como um fenômeno da natureza que demanda o registro artístico precisamente por sua singularidade: não há duas mortes iguais, e qualquer regularidade perceptível nos processos de decomposição orgânica é apenas aparente – sobretudo perante o olhar estético. A fim de melhor esclarecer essa última reflexão, cabe ressaltar que os cadáveres de animais que servem como modelos para Ana Elisa são encontrados em sua própria chácara e armazenados em gavetas e refrigeradores; convivência, portanto, dupla, que se inicia durante a coexistência num mesmo território e que perdura após a morte, quando a proximidade torna-se ainda maior, já que os cadáveres são trazidos para um espaço de maior intimidade.

Reproduzir a morte na matriz da gravura significa, por outro lado, elevá-la ao absoluto próprio da obra de arte, esvaziando-a de sua individualidade orgânica e dotando-a da singularidade artística; trata-se, por conseguinte, de um processo através do qual Ana Elisa Dias Baptista afasta-se de um registro puramente mórbido e empreende uma nova celebração da vida, concedendo a cada pequena criatura um perene espaço na eternidade artística. Não se trata, portanto, de meditar sobre a efemeridade da existência e sobre a redenção futura: essa é uma arte que desconhece o pecado e que, mais ainda, permanece à parte de todo pensamento que se ordena de acordo com aquela estrutura dicotômica metafísica – de um lado a morte, de outro a vida. Cabe perceber vida e morte como duas faces de uma mesma moeda, como partes de um ciclo cujo sentido deve ser apreendido esteticamente; trata-se, portanto, de celebrar a vida através da morte, em ambas reconhecendo uma única beleza.

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