Gravura Brasileira

Felipe Ehrenberg

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O ARTISTA EDITOR DE INCERTEZAS

Néstor Garcia Canclini

 

Devem existir poucos empreendimentos tão árduos, em fins de 1992, como foi o V Centenario. Pode-se dizer algo que não seja óbvio, e que transcenda a reiteração de comunicações e exposições, a frivolidade celebratória ou a indignação que se tornou rotineira? O pior é que Felipe Ehrenberg propõe-se a dar sua opinião em um museu e experimentar os recursos cansados das artes plásticas.

A primeira coisa a que devemos agradecer-lhe é que, em vez de tentar ser novidoso, descobrir o Descobrimento, proponha uma reflexão radical sobre seu significado contemporâneo e sobre as incertezas que as artes plásticas enfretam hoje ao ocupar-se das incertezas da história. Digo que esta reflexão é radical porque trabalha criticamente com vários dilemas fundamentais da cultura ocidental, que são também eixos da interação conflitiva entre ocidente e o que lhe seja estranho: a) a tensão entre escrita e visualidade; b) entre representação e comunicação artística; c) entre fragmentação e totalidade, contidos e continentes; d) entre o simulacro da presença que as obras de arte perseguem e o carácter deferido e incerto de seu olhar.

1.- Fazer livros ou pintar? Um artista que esteve entre os que inauguraram a arte conceitual no México e na América Latina, que usou como recurso de experimentação visual desde o mimeógrafo até a fotocopiadora, que desde a época de Beau Geste Press interrogou-se sobre o que significa fazer livros-objeto e editar as imagens, só dá um passo a mais quando coloca livros de 1.80 metros de altura em uma exposição.

O que é editar um livro com produção visual? É documentá-la ou vesti-la com o reconhecimento e o prestígio da letra escrita. Porém é também, como sabemos desde Jacques Derrida, lutar contra o predomínio logocêntrico da escrita sobre a visualidade no pensamento ocidental.

Poucas obras artísticas problematizam tanto a relação entre o que se lê e o que se vê como os cinco enormes volumes com os quais Ehrenberg introduz-nos em sua mostra do Museu Carrillo Gil. São livros com capas solenes, mas se tornam lúdicos ao vê-los abertos, fazendo emergir cenas históricas ou cotidianas em alto relevo. Geram surpresas semelhantes aos livros infantis que ao abri-los fazem estalar paisagens ou castelos. Mas aqui irrompem as contradições violentas da história. Essa violência está editada mediante uma bela realização visual, uma composição austera que seleciona e combina signos-chave dos dramas americanos. A diferença da exuberância barroca com que Ehrenberg buscou representar em outro tempo à aglomeração urbana e mais-mediática, estas instalações brindam uma versão-visão depurada (e por isso contundente) de suas interpretações históricas.

2.- O primeiro livro inclui cinco volumes. Volume é uma palavra anfíbia, que se usa na escultura e na literatura. Alude a ocupação do espaço e à organização em partes, em tombos, em seções de um conjunto. Neste caso, organiza fatos históricos sob uma estratégia não cronológica, mas político-visual e comunicacional. Estas instalações não só querem representar processos; interrogam-se simultaneamente como comunicar essas representações em um contexto específico.

Que diferença existe entre outras instalações que Ehrenberg fez, como por exemplo as oferendas dos mortos, e estas dentro do museu? As instalações ”volumosas" gigantescas, buscam uma cumplicidade e uma competência com a grandeza da instituição, aspiram ocupar o espaço com medidas apropiadas ao reconhecimento do que o museu proporciona. Mas ao mesmo tempo tentam deslocar ou transgredir a lógica do museu de arte. Em vez de quadros ou esculturas, exibe livros. Não livros de arte, mas "como para um museu de ciências naturais ou de história": pela presença e variedade dos objetos e as cenas, pela acumulação de imagens naturais e sociais de extração heterogênea. Procura um envolvimento de diversos espectadores, e da multiculturalidade que qualquer habitante de uma grande cidade leva dentro de si, citando cenas históricas, ataúdes e máscaras, uma marimba que se converte em pênis, uma rata dissecada como as que trouxeram os barcos conquistadores mas que cotinuam existindo; as cruzes que oprimem almofadas, cordas de sisal (mecates) junto a navios e televisões. Os contrastes logram-se pela coexistência de imagens de diferentes épocas: figuras de códices precolombinos que lutam contra dragões e caveras punks das mitologias européias antigas e recentes, e, uns e outros acabam parecendo-se alebrijes de Linares. Uma arte mestiça híbridiza culturas em cruzamento e tempos distantes.

3.- Do ponto de vista das relações entre continente e conteúdo é possível interpretar que nesta exposição a forma cultural européia -o livro- abarca a visualidade americana. Mas é possível, assim mesmo, uma leitura inversa. Por alguns momentos, Ehrenberg cede às oposições frontais entre o americano e o europeu. Por que a variedade e vivacidade das cores está toda do lado americano? Na iconografia européia também há diversidade e forças acumuladas, usos múltiples de seus mitos e das imagens que os revelam. Mas Ehrenberg vê a cultura européia monocromática, uniformada, só iluminada pelo vermelho das chamas com que destrói. A América, ao contrário, seria uma festa: marimba e sexo, pebolim e máscaras multicolores.
Embora, a realização -ao adotar soluções plásticas e operações tecnológicas modernas e pós-modernas- assume e celebra contribuições européias. Uma grande parte da exposição apresenta-se, mais do que como instalações estáticas, como mostruário de inventos, desenhos, experimentos, jogos improváveis, ao modo das interpelações entre arte e ciência de Leonardo da Vinci. A Europa chega à América, segundo esta mostra, como Inquisição mas também como Resnacimento. E no meio desse tom científico e exploratório, irrompem aparições mágicas, espelhos quebrados que são aranhas, a marimba erotizada, figuras como chimarrão que compõem janelas da igrejas, pintadas por sua vez como lacas de Olinalá. O científico e o mágico, o moderno e o tradicional, entrecruzam-se na Europa e na América.
O espaço que a exposição abre a outro império pré-colombino, o Inca, mostra através dos quipos esta combinação de saberes. As cordas (mecates) brancas, logo de fibra colorida e finalmente de plástico sugerem a continuidade e o passo das técnicas na história. Instrumentos de mnemotécnica, de leitura e de imaginação, de cálculo e jogo, os quipos separam o tempo sagrado e o profano, o cosmológico e o cotidiano.

4.- A exposição encerra-se com uma cobra de jardim cultivado que representa um percorrido desde o Atlântico até o Panalto. Estão entre uma série de quadros feitos (anacronismos: assim como os pintores renascentistas e pós-modemos assumiram personagens antigos com roupa da época dos artistas, estes quadros -adenda de exposição- dizem com que distância o pintor está registrando: um gravador, um microfone e uma filmadora, no meio de paisagens pré-modernas, ironizam as dificuldades de representar e comunicar a realidade.

Esse carácter diferenciado da representação faz-se ainda mais explícito na cena final. Um biombo separa-nos. Vemos através dos periscópios a alegoria pintada em um sofá, que se reflete e deforma em um espelho: mundo bucólico tropical mesclado com imagens medievais, personagens de três culturas: americana, africana e européia. Vemos através de ângulos distorciodos, multiplicação dos olhares e os enfoques.

O que se diz, comunica-se e imagina-se nesta mostra é possível por haver escolhido o caminho da instalação. Há livros, quadros, objetos cotidianos e cenas rituais: mas tudo está resignificado pela estratégia com que lhe dispõe no espaço e o articula além das convenções ordinárias.

Os libros podem ser lidos como caixas de feira ao acionar uma manivela que põe em movimento as figuras mitológicas; podemos transpassar as cortinas dos quipos e divertir-nos com eles. É possível brincar e reverenciar. Tudo está fragmentado e propõe usos descontínuos. Não obstante, Ehrenberg diz haver procurado "conformar uma totalidade", "algo enciclopédico", Não pretende fazê-lo incluindo todos os momentos-chave da história americana; o insinua bem sua intenção abarcadora e a monumentalidade que organiza o conjunto.

É possível construir enciclopédias no final do século XX? "Pode-se fazer enciclopédias pessoais -explica-me Ehrenberg-, que se renovem cada vez que se aprenda algo novo. Quiçá não seriam enciclopédias de fora para dentro, mas de dentro para fora."

A instalação polimorfa e multicultural, como a ensaiada nesta exibição, não pode ser onicompreensiva. É um combate entre a fragmentação e a persecução de algum tipo de totalidade (rota) que nos permita reconstruir um sentido global, ou ao menos evocarnos ele. Leio no catálogo de uma recente exposição de instalações efetuada em Austin (Texas) sobre o mesmo tema do V Centenário, que o atrativo das instalações é que permite apresentar e experimentar as possibilidades da indefinibilidade da arte, da história e do próprio fenômeno da instalação. Fazer uma instalação, ou seja, o ato de colocar uma multiplicidade, uma proliferação de objetos em uma certa posição, contravém com qualquer museologia compacta, qualquer tentativa enciclopedizante.

A subordinação dos objetos a um discurso, que não pode evitar a fragmentação e a mescla problemática com os outros, está declarando ao mesmo tempo a aspiração à totalidade e à imposibilidade de alcançá-la. A descontinuidade e a luta contra ela: as instalações aparecem como o tipo de prática artística que melhor corresponde a uma história concebida como articulação aberta de acontecimentos, como construção multicultural de uma intersubjetividade sempre precária. Esta é a maneira da qual podemos falar de uma sociedade a outra, e entre nós, quando já não regem as pretensões totalizadoras dos conquistadores, nem dos evangelizadores, mas outras vias de globalização nos fazem flutuar entre novas universalizações e novas formas de asimetria e dominação. Por isso não podemos ficar na simples pintura de neo-mexicanismos ou neo-americanismos, na complacência fundamentalista com as histórias locais. Americano e cosmopolita: o artista multicultural, como Ehrenberg, é o que melhor afirma nosso pretérito imperfeito em um presente de transições.

Notas

1 Jacques Derrida, De la grammatologie, Paris, Minuit, 1967.

2. Beverly Adams, "Installations", en Mari Carmen Ramírez y B. Adams, Encounters/Dísplacements: Luís Camnitzer, Alfredo Jaar, Cildo Meireles, Archer M. Huntington Art Gallery, The University of Texas at Austin, 1992, pp. 25-33.

 
 

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