Gravura Brasileira

Felipe Ehrenberg

Visite o site do artista

Obras

Textos

Ensaio em processamento:


Pas de Deux:
Pensamentos a respeito de umas telas que estou pintando
Felipe Ehrenberg

“... não é o mesmo ver um assassinato
a três metros de distância que ser a vítima.
Ou o assassino!”
 
 

-I- (Brasil 06/05/02, 18h16)
Em meados de outubro de 99, pouco antes do Dia dos Mortos, acabei Violentus Violatus. Ou melhor, VV acabou comigo.

Tinha vivido tanto tempo tentando compreender a violência que me asfixia por todos os lados, na minha rua, na minha cidade, no meu país, no mundo inteiro. Perplexo diante da bestialidade humana, da dos meninos que torturam seus coleguinhas de classe, a dos mesmos meninos que, já grandes, odeiam, humilham, despojam, roubam, desdenham, violam, manipulam mercados, declaram guerras, se despedaçam em nome do futebol, matam em nome de suas religiões. Anos esquadrinhando meus medos (o cheiro do medo), minha indignação, meus cuidados; sonhando pesadelos de podridão, latidos de mando, uivos e gemidos, o som de golpes assustadores, ritos de dor, feridas e cicatrizes, dor, vômitos, roupas rasgadas, lascas de ossos, vísceras esverdeadas, balaços e explosões, chiados de rodas: as vozes da intolerância, da impaciência, da ignorância, da maldade.

Anos vendo crescer minha própria raiva.

Buscava aquela cara da violência que pudera eu ter avistar para exorcizar da minha vida. Nunca me perguntei por que pensava que seria possível fazê-lo por meio da arte.

Durante muito tempo meu estúdio foi vitrine de uma fúria demencial, contida: mesas cobertas de recortes fotográficos de jornais amarelos como o soro, polaróides manuseadas, tiradas por policiais militares, aberrantes vídeos norte-americanos reunindo violações, estupros, crianças mutiladas, mulheres esquartejadas, atropelados... fotos de corredores de bolsas e coronéis... Meus esboços e desenhos jorraram o odor ferroso e as cores do sangue - fresco, coagulado, seco --, os pêlos e os sinais do que eu tinha reunido e organizado para... nunca me perguntei por que pensava que a arte serviria para algo.

Violentus violatus foi um impulso quase telegráfico: intensas mensagens breves interrompidas por pontos, linhas ponto ponto ponto linha ponto linha linha, ésse-ó-ésse, SOS. Na verdade, nenhuma dessas “obras de arte” me serviu nem para entender a violência nem para assumi-la, nem mesmo para dialogar através delas com alguma pessoa, algum colega artista. Deixam-se ver, apenas, ainda, algumas ilustrações em Biombo Negro, alguma entrevista por aí. Encerrada a exposição, armazenei uma e outra coisa, todo o resto destruí. A única coisa que aprendi é que Tanatos é tão inescrutável quanto invencivelmente civilizado, que seu campo de batalha se transportou para as telas pequenas e grandes, que, não obstante a competência de uma West Wing “democrata”, a muito “republicana” firma de Bronson, Van Damme, Stallone, Schwarzenneger e Sucessores S.A. continua representando seus clientes na Colômbia-Venezuela, Paquistão-Afeganistão, Vaticano City-Castro Street, Palestina-Israel, Yupilândia-Nacotitlán, para o inquieto deleite das perplexas multidões pós-11/09/01, no México e em todo o mundo.

Não sei se aprendi a viver com este outro desencanto --o da arte plástica que não serve para nada--, mas continuei desenhando e desenhando, mais e mais. E voltei a acariciar a idéia -aquela tão longamente adiada- de “ocultar enquanto se mostra”, essa, a dos polípticos desdobráveis, a de... bem, falarei dela mais adiante.

Enquanto isso, continuava de pé a pergunta lógica: E AGORA? Não posso deixar de ser o que sou, de modo que agora que posso fazer para romper a comodidade quase tediosa de fazer arte “como de costume”? Quero continuar a ser um neólogo, deslizando para ser mais um artista? Então me dei conta de que talvez aqui, em outro daqueles lugares comuns com os quais sempre flertei, se escondia uma resposta. Eros e Tanatos são, sem dúvida, um tipo de lugar comum, não? (o lugar comum é sempre o de todos nós.)
Assumida a inevitabilidade dos atributos malévolos de Tanatos, quem sabe se na concupiscente tranqüilidade que oferece Eros eu pudesse encontrar outra razão de ser... Voltei a estudar o Caso dos Gêneros Caídos em Desuso, que, por razões óbvias, não incluiriam A Paisagem ou a Marina, A Natureza Morta, A Lareira ou o Bodegón, mas sim O Nu e O Erótico. A pesquisa logo se faria priápica.

-II-
O Nu como gênero artístico já não é o que era, não senhor. Teve seu tempo quando nós andávamos nus em pêlo e o teve também quando nos cobríamos e nos culpávamos quando nos descobríamos. Hoje os confessores são pedófilos, as meninas se tornam go-go girls e, para evocar o apaixonado abraço da cópula, basta um clique de mouse para que surjam galáxias inteiras de ciberpornografia. Já nem nos quadrinhos pintados pelos artistas de domingo aparece o gênero do Nu. Fora com O Nu.

Passei a estudar cerâmicas gregas, afrescos, mármores e bronzes de Herculano, Stabia e Pompéia e todo tipo de lupanares da antigüidade européia. Depois pulei para a revisão de Pietro di Aretino e do Marquê von Bayros. Passei por Egon Schiele (tão austríaco como Hitler) e cheguei, cheio de asco, a Mapplethorpe. Folheava coffee-table books sobre pinups; até cheguei a manusear a enorme enciclopédia alemã do erotismo (28 volumes científicos asquerosamente hipócritas e mal impressos) que, por alguma estranha razão, havia confiscado de meu pai havia muitíssimos anos. De vez em quando fazia uma ronda às galerias para ver o que propunham as academias de arte atuais. Consegui localizar as origens das palavras “pornografia” e “erótica” e vi como Setentrião tinha transformado os tais vocábulos até fazer deles quase sinônimos, o primeiro “o que praticam as classes baixas” e o segundo “do que gozam as altas”. Tal caminho não me interessou em absoluto: preferi rumar para o meridional.

Então estudei de novo miniaturas persas ou indianas, pinturas e xilogravuras japonesas, os mosaicos de Pompéia e o Pérgamo, o templo de Rajput. Daí voltei às minhas raízes para observar, novamente, o Tlatilco dos começos do pré-clássico, a cultura chamada de Tiro na sua etapa Comala, as argilas de Colima e Tlapacoyan (sobre isso já tínhamos falado, uns anos antes, Claudia Gómez Haro e eu, ao tramar, para um livro, o resgate do corpo na arte pré-colombiana...)

-III-
Até que atravessei uma noite lendo um livro chamado “The artist and his model”, de sabe-se lá que autor, um desses Penguin Books macios, velhíssimo. Foi o que me deu a pista para buscar, agora sim de maneira meticulosa, obras que tratavam exclusivamente disso: o Artista e seu Modelo (note-se o masculino); dei-me conta de que, sem exceção, O Artista está sempre vestido e A Modelo, nua. A-há! Havia encontrado Uma Missão, se não para salvar o mundo, ao menos para me recuperar e voltar a situar-me como neólogo.

-IV- (México, 06 e 07 de 1998)
Flashback: Onde se localiza, exatamente, o umbral entre o universo construído no interior de uma obra de arte bidimensional (como uma pintura, uma gravura, fotos analógicas ou virtuais) e o mundo da percepção do espectador, se não justamente na pele da obra, na superfície do suporte sobre o qual ela se apresenta?

Se observamos a Imaculada Conceição que Giorgio Vasari pintou (esse contra-reformista declarado) ou as alegorias que fez para glorificar aos imprevisíveis duques de Medici, vemos que nos situa - como espectadores - a não menos de quatro e a não mais de trinta metros de seus objetivos. Por outro lado, quanto às cenas de batalha em afrescos nas paredes do palácio de Cacaxtla, em Tlaxcala, pintadas por criadores (que não por serem anônimos são menos artistas), nos localizamos entre oito e dez metros de distância das cenas representadas.

Em todas as imagens criadas antes da invenção da câmera fotográfica, as distâncias que os artistas interpunham entre os sujeitos de suas obras e quem as observa serviam para acentuar a intencionalidade da peça. A câmera fotográfica (cujas lentes são cada vez mais versáteis) abreviou esse espaço até reduzi-lo a uns tantos centímetros. Nunca mudou, no entanto, a natureza da distância sujeito/objeto, aquele espaço anteposto pelo artista entre seu olhar e a do terceiro, que observa as imagens criadas. O terceiro. Esse ubíquo e sempiterno espectador terceiro, nós, os que observamos a cena.

Somente o cinema tentou desfazer-se do terceiro espectador para incluir ao sufocado voyeur na experiência subjetiva: “somos” a paciente supina no quirófanos, que olha enquanto nela intervêm médicos e enfermeiras; “somos” aquele que, ao afogar-se, observa com os olhos (quer dizer, com a câmera) como se distancia da superfície da água, afundando até que a cena evanesce...

Esse assunto me intriga: não é o mesmo ver um assassinato a três metros de distância que ser a vítima. Ou ser o assassino! Em cada um dos três casos a ação instantânea adquire perspectivas muito distintas. A visão que tem a testemunha ocular de um crime (um terceiro) é muito diferente da vítima quando olha nos olhos de seu assassino, quando percebe com o canto do olho a faca na mão daquele e a trajetória da arma até chegar-lhe ao coração. Seu olhar é vastamente distinto ao do assassino, que pode observar o medo na cara de sua vítima, que olha como a faca penetra o seu peito, que vê como emana seus sangue, respingando-lhe a roupa.

O assunto me intriga pelo que suscita na alma de quem olha.

-V-
Ao elaborar as obras para Pas de Deux procuro novas acomodações: quero mudar o lugar a partir do qual nós, artistas, nos acostumáramos a localizar a superfície “de entrega”; trata-se, repito, daquela misteriosíssima planície em que a caneta deposita a tinta ou o pincel, o pigmento; quero NÃO marcar distâncias para o espectador, quero NÃO relegá-lo à posição de um “terceiro”. Em poucas palavras, quero que quem olhe seja convertido em protagonista. Por que não começar, então, por onde menos se espera: na paragem mais íntima que pode existir entre duas pessoas, a cópula?

Olho as imagens criadas sobre o amor, ao longo da história; melhor dizendo, sobre o ato de amor. Em um princípio remoto, gravadas sobre uma pedra, modeladas em barro, vez ou outra pintadas, aquelas imagens nos serviam para celebrar nossa humanidade. Retratar o momento da procriação era um fetiche no qual apoiávamos necessidades biológicas que revestíamos de ritual e religiosidade, mas também - que ninguém duvide - para avivar a concupiscência. Com o tempo, representar visualmente o ato de amor passou a significar um gesto estético, um gênero que, para o bem ou para o mal, se erigiu como uma válvula de nossa sensualidade, de nosso desejo in-moderado.

Olhemos, pois, todas as imagens criadas ao longo dos tempos. Todas nos obrigam a ser voyeurs, terceiras pessoas. Por que, então, não tentar converter o voyeur em PROTAGONISTA... e, de quebra, gozar da cópula alheia como se fosse a sua própria?


-VI- (Brasil - 07/05/02 21h37)
Enquanto fazia minhas pesquisas, lancei-me à busca de uma pessoa que concordasse em posar nua, não para um artista vestido, mas sim - atenção! - para um despido. Os dois em pêlo. Em transe amoroso FINGIDO! O assunto é muito mais complicado do que pode parecer à primeira vista. Em primeiro lugar, é preciso deter-se no impossível tema do mistério mais doce, aquele que surge quando dois humanos se despem um em frente ao outro. Em segundo lugar, o senhor convença uma dama de que se trata de trabalho, e não de safadeza. Em terceiro, bem, ao desenho. E desenhar enquanto se está em clima de amores, por mais falso que seja, requer um temperamento de aço e um pulso firme; depois, de maneira inesperada, vários cavaletes, desenhados de modo que seja possível fazer os traços nas inverossímeis posições a que nos obriga a paixão. Por fim encontrei alguém disposto a trabalhar de acordo com minhas condições. Graças à paciência (terá sido perversidade?) da Modelo Anônima, o trabalho foi concluído em pouco mais de nove semanas: mantendo um olho fechado para evitar a paralaxe da tridimensionalidade, sem risco prévio a lápis, pouco mais de uma centena de desenhos a caneta e tinta, carregados, cada um carregando mais de um segredo.

-VII- (Brasil - 16/02/02 12h16min33)
Flash-forward: Tinha decidido, em 1998, separar-me do tema da violência. O divórcio definitivo veio um ano depois. E, em 2002, abandonei o México sem pensar em voltar. Foi durante esse tempo que decidi retomar a pintura. Não me foi simples criar condições para isso. Nem sempre reconhecemos como tal a premeditação, e ainda me surpreendo por ter tomado essa decisão.

Dois anos e meio depois de ter escrito o primeiro texto, que agora é o do meio, compreendi que tinha que explorar a outra cara do mesmo “problegômeno”, explicá-lo a mim mesmo. Precisava deixar minhas idéias mais redondas, depois do impulso que me ocupa há quase um lustro.

Pas de Deux fora, até agora, um mero “working title”, um tipo de cabo por onde agarrar o projeto, levá-lo da mesa ao forno e vice-versa. Esse nome providencial, que é o momento supremo da dança clássica, tinha me permitido fixar um parâmetro, definir os limites do que estou fazendo: PINTAR.

Nada de novo sob o sol nisso de misturar emulsões pigmentadas e lambuzar com elas telas tratadas e previamente desenhadas a carvão para criar, assim, imagens pintadas. Ao contrário. Atividade tão clássica nas artes plásticas como o ritual de passos compartilhados por um casal que dança ballet. Só que eu não sou um pintor. Quero dizer, nunca me especializei em pintura. Sim, pintei, é verdade: a última vez foi há mil e um dias, mil e uma noites e outras tantas luas cheias. Mas pintar foi algo que fiz a contragosto, pois quando era pequeno no México se dizia “vai ser pintor” de qualquer um que mostrasse alguma inclinação para o visual (ainda hoje se usa o vocábulo de forma indiscriminada para descrever igualmente desenhistas, gravadores e até escultores). O que explica que eu, desde muito cedo em minha vida como artista, tenha repudiado “a pintura” e suas conotações, e que o tenha feito de modo categórico (as convicções, disse Nietzsche, são uma prisão). Demorei um bom tempo, quase 20 anos, até que pude discernir com nitidez a diferença que há - e que deve haver - entre o que é “a pintura” e o que é “a imagem” - e, certamente, o que é “o ato de pintar”. Deve ser por isso que começo a gostar da atividade.

-VIII-
Preparar-me para o ato de pintar - agora o vejo assim - foi como a corte delicada, lenta e cuidadosa que uma mulher madura exige para deixar-se seduzir. Comecei por limpar meu coração de outros encantos, esquecer promessas que ninguém me pedira que fizesse, deixar que cicatrizassem muitas feridas, algumas causadas por outras pessoas, algumas causadas por minha própria culpa. Procedi, depois à investigação do horizonte a meu redor, abrir a guarda, deixar que soprassem sobre mim as brisas do inesperado. Então me dei conta de que estava sozinho diante do horizonte, que o enfrentava sem que ninguém - nenhuma voz, nem conhecida nem estranha - me sussurrasse coisa alguma, nem para me dissuadir, nem para me dar alento ou distração. Não havia um só sinal, um só caminho marcado para seguir; soube, então, que qualquer passo poderia conduzir-me a qualquer lugar e comecei a andar.

A pintura, me ensinaram desde pequeno, se baseia no pulsar caligráfico da vida, o desenho. Desenhar foi sempre a constante na minha vida e tinha ficado muito satisfeito com os desenhos que a Modelo Anônima me permitiu fazer. Contemplei a idéia de publicá-los em um livro de poesia e passei umas duas dúzias de cópias deles à poeta Margarita Martínez. Porém já tinha me lançado em busca da pintura, então...

-IX-
OS POLÍPTICOS: Claro, ia me esquecendo desse tema! Pois essa idéia continuava - e continua - como a Rocha de Gibraltar no meu horizonte. Havia criado os primeiros dois para Violentus Violatus. Trata-se de binômios, ou seja, duas peças seccionadas, cujas muitas partes se unem por dobradiças de modo a configurar uma só obra.

Para resolver os próximos, elaborei primeiro várias maquetes de papelão corrugado e depois me deixei levar por outras atividades (como, por exemplo, ganhar o meu sustento). Então recorri aos bons ofícios do artista colombiano Juan Fernado Vélez, meu entusiasmado colega na mesa dos Comensais do Crime. Juntos desenhamos uma série de protótipos para serem trabalhados em madeira, que tanto me apraz. No entanto se mostraram tão complicados de realizar que tive de encomendar a tarefa ao ebanista veracruzano Dionisio Cesáreo. Tardou em atacar a tarefa, mas, por fim, entregou-me os suportes que eu me poria a pintar de imediato. Só que, uma vez mais, o futuro teria um desdobramento inesperado: fui convidado para o posto de adido cultural do México no Brasil. E foi aqui que descobri o quanto se parecem esses polípticos com algumas propostas de Lygia Clark. Na coincidência mora a corroboração do acerto.


-X-
É tão bonito lançar-se adiante sem horário como cumprir algum sem destino definido. Para não confundir os passos às vésperas de nossa partida, pus-me a reordenar minhas idéias. Levaria comigo as maquetes de madeira para resolvê-las com calma em nosso novo lar, seguramente, mas, como desconhecia as circunstâncias que encontraria no Brasil, também levaria algumas telas.

Uma das muitas razões pelas quais não gosto de pintar é porque não me agrada o volume do bastidor ou a elástica instabilidade da tela retesada. Prefiro trabalhar sobre base firme, diretamente sobre a parede. Juan Fernando Vélez voltou a ajudar-me no preparo de umas duas dúzias de lonas com ilhós nas dobras. Estendidos nas paredes parecem peles secando ao sol para curtir... e graças a Annatlalli, minha filha, consegui que uma pequena fábrica de tintas em Xico preparasse emulsões vinilacrílicas que usaria, de acordo com a paleta que definira por computador, no Photoshop.

-XI-
OUTRA VEZ O PHOTOSHOP! Se com os desenhos e a maneira de realizá-los estabeleci um diálogo com a câmera e suas limitações, também pude armar um colóquio entre o computador e a pintura e seus bemóis.

Quanto maior a obra pintada, mais trabalhoso é o processo e maior o aforo requerido, é o espaço que se faz necessário para resolver uma pintura (uns dois ou três metros quadrados requerem não menos do que quinze lineares). Traçados ou visualizados os espaços das superfícies em branco, procede-se à aplicação das emulsões, por etapas. Não importa seu tamanho, cada aplicação requer um passo para trás para olhar e, em seguida, voltar ao quadro para somar algo, ou corrigir. Faz-se o vaivém, uma e outra vez, enquanto se constrói a imagem. É normal que as pinceladas demorem a secar. Portanto, também é comum trabalhar várias obras ao mesmo tempo, para avaliá-las, comparar uma com a outra. O processo é de aprendizagem, porque cada obra que se faz ensina algo e corrige erros da outra (as metáforas ficam implícitas).

Disposto a trabalhar tão logo chegasse ao Brasil, desmontei meu estúdio em Cuernavaca e me servi de um virtual, sobre a minha mesinha branca, na tela do monitor de La Calandria, meu computador: Adobe Photoshop. Até estabelecer um novo ritmo de trabalho dividido entre a criação e a diplomacia, meu estúdio seria esse, mesa, monitor e CPU. Paco Rocha encarregou-se de fazer xerox reduzidas de uma seleção de desenhos que depois capturei com a ajuda de Oteo, meu fiel scanner. Em dois meses de trabalho quase ininterrupto, consegui traduzir em forma e cor 28 deles, cada um com ao menos 4 variantes a escolher, um total de mais de cem opções cromáticas que me serviriam de base para a transposição para a tela sob forma de pinturas. Havia decidido que as obras teriam em média uns 3 metros quadrados de superfície, portanto, para conceber no monitor como se apresentariam em uma sala de exposição, idealizei um espectador em escala (uma foto de mim mesmo), que fui colocando junto a cada imagem enquanto a resolvia (ver texto introdutório e imagens do catálogo da mostra Umbras y Penumbras que apresentei na Galeria Metropolitana, México D.F., 1985).


-XII-
Pas de Deux nascera de desenhos feitos à mão, com caneta e tinta, fragmentos de dois corpos entrelaçados que teria sido impossível fazer com câmera fotográfica, por causa do foco, da profundidade de campo e coisas do gênero. Até aí, o tradicional. Para os passos seguintes, até chegar à tela, recorri, sim, ao que David Hockney chama “a fotografia óptica” (para distingui-la da “fotografia química”: as cópias reduzidas requerem uma lente, do mesmo modo como o scanner precisa de uma lente para digitalizar as imagens desenhadas e mandá-la ao disco rígido da CPU. Também recorri a uma lente para transpor minhas imagens para as telas, a do projetor de corpos opacos, o epidiascópio.

Feitos os traços ampliados a carvão sobre a tela, voltei uma vez mais a habilidades tradicionais para enfatizar o desenho, corrigindo e completando até conseguir o que se havia de pintar. Esse processo, diga-se de passagem, foi muito prazeroso.

-XIII-
Já diante da tela preparada que espera pendurada sobre a parede, cores à mão e brochas e pincéis prontos para serem usados, a história é outra. Já não tem nada a ver com mercado, história, teoria ou moral. Tampouco tem nada a ver com composição, seção áurea, ou teoria cromática. Simplesmente se trata de percorrer a experiência (ou a falta dela) para “resolver” a superfície em branco do modo mais prazeroso possível. O que não implica facilidade. Muito pelo contrário, porque, de repente, do modo mais inesperado, descobri que “resolver” é, na verdade, dialogar. Quero dizer que, na hora de começar a traçar a tela, de determinar as variações que faria na paleta (aquelas que já resolvera no computador) ou de planejar o ataque à superfície, dei por mim recordando quadros de outros pintores, e o que fora mais gostoso, “cruzando” pincéis com meus artistas favoritos da maneira mais amistosa e respeitosa.

Foi nesse ponto que decidi que cada obra seguiria uma plástica distinta e que, como toda conversa, não podia ser tão espontânea e diferente como o próprio encontro.

-XIV-
Não sei se a necessidade é, como dizem, a mãe da invenção, mas tenho certeza de que a curiosidade nunca é desinteressada. Quem inventou a fotografia foram os pintores insatisfeitos, parte de uma longa estirpe de gente que buscava atalhos para cumprir sua tarefa mais rapidamente ou com maior fidelidade.

Se a fotografia não apareceu antes não foi porque se desconheciam seus princípios, mas porque se fazia necessária toda uma série de inventos e descobertas prévias para inventá-la: vidro industrial, elementos químicos puros, papel homogêneo, celulóide; inclusive organizações diferentes, relações trabalhistas, sistemas de vendas, marketing, enfim. Paralelamente ao seu aperfeiçoamento, a fotografia estimulou mais e mais avanços técnicos. O que se buscou sempre - desde que alguém fizera os primeiros traços com uma varinha sobre a areia de uma praia - foram maneiras de criar imagens. Assim, demoramos milhares de anos para passar da pintura à gravura e daí à fotografia, mas apenas décadas para inventar o cinema, depois a televisão, a holografia, a digitalização da imagem... até chegar ao Adobe Photoshop e PLUS (ou seja, o que venha daqui por diante). O bonito dessa longuíssima travessia foi não termos descartado nenhum dos inventos anteriores. A única coisa a perder validade na pintura, em meados do século 19, foi sua razão de ser. E por muito que se busquem explicações, permanece o fato de que a pintura que hoje se adora (a que se comercializa) é um cadáver delicioso, é a múmia de Lênin depois do desaparecimento do comunismo.

-XV-
Que é a pintura senão pigmentos, óxidos e emulsões espalhados com destreza sobre suportes de madeira, fibras tecidas ou outros materiais? Durante séculos e séculos a praticamos porque demoramos a encontrar outras maneiras de criar ilusões capazes de convencer e comover. Hoje, a pintura já não é a única maneira de criar imagens, e muito menos a mais eficaz. Essa é uma das razões pelas quais declina (salvo para o mercado, certamente). Por que, então, voltar a praticá-la? Talvez para evidenciá-la em sua essência. Insistimos em conservar o pobre Lênin no seu cofre de vidro, dentro de seu estrambótico mausoléu, talvez para nos darmos ao luxo de meditar sobre o que foi quando vivo, nas forças psíquicas e sociais que desencadeou, para ponderar sobre as razões por que decaiu seu pensamento, inclusive - por que não? - para nos maravilharmos diante da insólita adoração que lhe foi rendida (tão parecida com a que ainda se concede a outros desses protohomens, Maomé, Quetzalcóatl, Jesus Cristo, Brigham Young, Buda etc). Poderíamos também querer ponderar sobre os motivos por que se conservaram seus restos e até por que se regulamentaram as visitas. Ainda assim, poderíamos admirar as destrezas dos que o embalsamarão e compará-las com a dos mumificadores egípcios; ou considerar os subprodutos derivados de seu culto; poderíamos, inclusive, maravilharmo-nos diante da peregrinação que rodeou Lênin desde que faleceu até a data em que o fotografou o último turista.

Vale para pintura o que se disse de Lênin. É Amenhotep... Tutankhamon... as Múmias de Guanajuato, o Homem dos Alpes, A Menina dos Andes... Tudo é fascinantemente inútil, anacrônico e lucrativo. Assim também a pintura pintada, a vitrine que contém os restos mumificados do que foi, certa vez, a única maneira de criar uma imagem...

-XVI-
Penso e penso. Será possível que gente acostumada a ver luz projetada sobre fibras polímeras, acostumada a ver elétrons impactando gás a alto vácuo dentro de um recipiente de vidro possa se comover diante de meros trapos lambuzados de emulsão pigmentada? Será possível superar o valor que o mercado outorga a uma assinatura cuidadosamente cultivada?

...................................
................
...........
.....
...

Talvez sim. Quem sabe seja possível que a pintura possa recuperar o significado de sua existência se a imagem que contém - afinal de contas, a única coisa que realmente importa - nos trouxer de novo à vida... como quero sugerir com essas obras, telas pigmentadas que dão a ilusão de ser o que parecem ser: a intimidade do amor. E que seja a indiscrição a nos distrair dos horrores da violência.
.........................
....................
.....
... pas de Deux (“não há dois, não há distância”... me disse Rafael Segovia)...


...ESTAS NOTAS NÃO ESTÃO CONCLUÍDAS.
CONTINUAM.... (ao menos, é o que acho)

 

Copyright Gravura Brasileira

Rua Ásia, 219, Cerqueira César, São Paulo, SP - CEP 05413-030 - Tel. 11 3624.0301
Horário de funcionamento: Segunda a Sexta: 12h00 às 18h00 ou com hora marcada

site produzido por WEBCORE
https://disklinikleri.com.tr/