De 19/2/2008 a 28/2/2008
lançamento do livro
“CARÁTER GRAVADO”
de Flávio Castellan (Capi) e Ulysses Bôscolo
abertura
dia 19 de fevereiro de 2008
terça-feira, 19 às 22hs.
Livro realizado de forma manual e mecânica envolvendo procedimentos antigos e o retrato de profissões em vias de desaparecer.
Impressão de xilogravura e tipografia na produção contemporânea de um volume ilustrado.
xilogravuras: Flávio Castellan (Capi)
texto: Ulysses Bôscolo
exposição de desenhos, matrizes, textos e impressões originais do livro
De 19 a 28 de fevereiro de 2008.
local: Galeria Gravura Brasileira
rua Fradique Coutinho, 953 ao lado da livraria da Vila
f.: 3097.0301 e 3097.9193
segunda-feira a sexta-feira: 10/18hs. e sábado: 11/14hs.
www.cantogravura.com.br
apoio do Programa de Ação Cultural – PAC do governo do Estado de São Paulo.
A Bancada: Marcas
Texto: Ulysses Bôscolo
Introdução
Quando entramos em qualquer uma dessas lojas de ferragens; lojas antigas ainda com certa originalidade, você sente, você vê a coisa velha, materiais velhos endurecidos pelo tempo. Reparem bem no balcão (geralmente de madeira). Existem marcas profundas de um trabalho, de um sulco produzido por objetos; cantos pontiagudos, arestas afiadas na passagem de placas de metal, parafusos, pregos, ferramentas em geral que passam pelas mãos do vendedor, pelo corpo da madeira (a bancada) até o cliente que observa, as mãos suando (num dia de verão) o suor; um verdadeiro verniz no balcão diariamente.
A primeira idéia sobre um projeto de antigas profissões me ocorreu em 2000 – 2002 quando comprava chapas de cobre na Casa da Bóia, no centro de São Paulo, próximo a igreja São Bento.
A bancada da loja, totalmente de madeira, sobreviveu a “chegada”, ao impulso enervante das pessoas que compram tudo em cobre, chumbo, latão e alumínio.
São pequenas fissuras – buris, encantos apagados, riscados, raspados recortados; a bancada, como um cosmo natural onde o folheado até parecia estar fossilizado, uma pele de dinossauro, um enorme lagarto com o corpo estendido, preguiçoso.
Havia muitos arranhões, muitas marcas. Isso naturalmente me deixou intrigado.
A Bancada: Marcas
O Caráter Gravado entrevistou uma série de artistas e pequenos artesãos que geralmente trabalham em espaços pequenos, rústicos, simples, em geral, da zona sul até o centro de São Paulo; lojas, comércios de rua nos calçadões, todos com uma aura (se é que eu posso me referir a isso como uma espécie de sensação antiga, centenária, presente em toda a história da arte, do Brasil, na forma de ferramentas – máquinas – prensas – publicidade, uma memória mercantilista – popular – artesanal que está presente no ar, nas coisas, impregnando o rosto das pessoas que estão afiadas – feito navalha e sensíveis, que percebem o belo e o comercial andando juntos na forma de cultura que, de mãos em mãos desce, abençoa nos estabelecimentos do povo e suas necessidades assim como uma garoa).
A aura cinzenta, úmida, marrom clara, escura, púrpura, rosada da madeira transformada em bancadas figuram, para receber os clientes, em corpos maiúsculos. Bancadas feitas de peroba rosa, madeira grossa prevendo que o negócio é para durar. Uma duração que irá de pai para filho, por gerações (e por cultura?).
O balcão é feito para resistir a passagem do tempo.
Existe uma frase dita pelo gravador E.C. Jardim sobre a tradição, não como uma repetição entediante de um fazer mas sim, como transmissão de energia vital, uma força alcançada pela “presença de ateliê”.
Quando ouvi pela primeira vez, em 1999, isso me tocou profundamente. Só pude perceber seu real valor trabalhando em conjunto “três vértices” de uma aliança, que acredito, pode estabelecer algumas bases para eu entender as três coisas fundamentais e por que não, temperamentais e políticas, que sempre acompanharam o homem pela história e por esta presença do artista em um local especial de trabalho: a Arte, o Comércio e a Guerra, traduzidas no corte da gravura em metal, um auto retrato, xilogravura, espírito livre e literatura, um apêndice entre as imagens gravadas e a tentativa de se aproximar de um universo novo, estranho e ilimitado como uma matriz.
Um ardor do espírito por imagens, por palavras, escondido, difundido abertamente, esmaecido, destruído e reconstruído pelas guerras internas, pelos mestres, por pessoas (amigos, professores, entrevistados e artesãos) que observaram a natureza como movimento e puderam, de alguma forma corrompe-la por que isso é energia, via tecnologia do corte de informação: nesta transmissão tratada pela matéria (aqui eu verifico que a talha em madeira, algo vivo no momento é a base para a construção do livro O Caráter Gravado). Estou instigado pela história da gráfica recente que chegou até aqui, que se desenvolveu na política do porrete e da espada, entre letrado e analfabetos, a matéria do corte medieval em madeira de umburana, polida, secular, simples, brasileira que genuinamente, chegou e se estabeleceu como profissão, hoje, distinta, quase esquecida: a gravura de cordel. Acho que existem resquícios desta atividade também, adormecida em outras profissões...
O ateliê de fundo de quintal.
Corte
Conquistas mutantes, uma caminhada, um olhar, sentir o prazer e a conquista de um espaço interno – contentamento – religiosidade, servindo-se da bíblia de fatos humanos em constante transformação vital – mistério – permanência – ensino – educação – ferramentas, o espírito arguto escolhido para receber de bom proveito uma etapa aberta – cortando o tempo, estando presente no tempo: representando, sempre a “presença” o fruto.
Pelo trabalho em meu ateliê, na edícula de um sobrado impera a era da madeira, do aço e do papel.
O corte – o ensino trabalhado via matriz – tempo respaldado de força e dedicação existe, em conjunto, na xilogravura, na gravura em metal e na literatura (por que não?) cortando, assumindo como um raikai simples, uma espécie de despertar; um corte na consciência do espírito?
O artista – artesão presente carrega a existência da figura de um mestre (uma pessoa portadora de conhecimento) que abre a mente para respostas práticas ministradas habilmente pela palavra e pelo ateliê – matriz, um lugar experimental onde a tradição como força positiva é construída. Professor e aluno muitas vezes fora da escola.
Pela gravura em metal, conheci a figura do mestre – artista professor.
Pela xilogravura, observei o balcão como uma metáfora do tempo em construção onde o lenho, pode aquecer (lembre – se que as grandes conquistas comerciais marítimas foram alcançadas em naus inteiramente de madeira - o símbolo vivo de uma viagem através da água) e depois, para firma-las comercialmente, foram aos pequenos - grandes balcões de portos improvisados. O corpo da árvore serviu como apoio para os grandes negócios.
Nenhuma outra matéria (talvez o metal – chumbo ou a pedra) acompanhou a história do homem e sua conquista participativa com a natureza do que o lenho “aberto” – fatiado – trabalhado e esculpido da madeira.
São suas vantagens e utilidades (peso, leveza, durabilidade, extração aliado ao fogo, que produz certo pavor e amor, impregnando o trabalho do corte com a queima e a devastação.
O que é a goiva ou o formão se não for esta tênue lembrança dos esforços das maiores conquistas produzidas pelos músculos do corpo, aliando o aço do machado a tentativa de derrubar um corpo composto, que se ergue em direção a luz?
A madeira na figura da árvore produz uma ligação viva entre as forças do céu e da terra.
Das ferramentas com cabos de madeira, o aço lapidou – instigou - desenhou as formas variadas na viagem sobre a carne endurecida de um tecido vivo, natural, obstruída de veios - estampas - anéis de crescimento, marcas sutis entre as estações que regem as emoções dos homens e deixam a mente, preparada para a jornada do desbaste.
Distraem pela fissura do vazio a dança das formas naturais no lenho, onde a “energia vital” retirada da terra: água e minerais circulam, abrindo os músculos como uma silenciosa respiração.
Livro
Todas as profissões descritas no trabalho do Cárater Gravado estão amparadas, algumas até estranhamente, com a transmissão de uma energia vital.
Todas trabalham sua história artística comercial através do conhecimento habitual com a matéria, que responde, pela habilidade e proximidade com o cliente, uma demanda esculpida no tempo, uma procura certamente cada vez mais rara, de um trabalho motivado pela inteligência das mãos.
O sapateiro, por exemplo; contato com o couro, com a linha de costura passando pela borracha, pelas máquinas e ferros de furar, remendar e engraxar, tudo ministrado na ponta dos dedos, nos calos da palma, uma habilidade incrível no concerto das peças, algumas tristes e usadas de dar dó. No ateliê não tem tempo ruim. Apesar da rotina e da falta de fregueses, freqüentemente ele armazena um arsenal de histórias picantes que encheriam facilmente um livro, distinguindo o caráter e as intenções da pessoa, apenas com o olhar; um tiro certeiro, como foi o caso do senhor Lau, talvez o mais simpático dos entrevistados quando nos viu (eu e o Flávio), pela primeira vez.
O seu estabelecimento é aberto para a rua, deixando a mostra seus pertences.
A lógica é construir um produto comercial sem segredos, um artesanato de qualidade exigente. Não existem muitas experiências no campo minado da vida. Esta exigência garante os fregueses que pingam ali como pombos, enquanto esperam pelo sapato remendado com vigor e excelência.
O senhor Lau não se distrai mas ouve e fala, fala feito um cacatua. Entra em períodos raros de silêncio e depois fala, coaxa. Ele aprendeu com o pai a ser exigente consigo mesmo (algo interior) e seu pai aprendeu com outro sujeito que “achou curioso aquela criança perdida, na frente da loja observando o homem certo dia, pregando, remendando e colando a sola de tantos sapatos!
Eis a figurado mestre. Poesia pura na descoberta de seu “dom”.
Entendo como “dom o motivo (pode ser econômico, espiritual) contanto que se faça bem, que conheça a técnica e aprenda sozinho ou com a ajuda de um mestre, a sua música. Com um pouco de sorte, podemos chamar este fazer pelas mãos curiosas, de arte.
Observo esta curiosidade artística, um pouco melancólica talvez, aplicada no concerto de inúmeros materiais e até na atividade corriqueira de um pedreiro ou de um eletricista. Porém, existe algo que difere do senso comum, em atividades que envolvem tempo e dinheiro.
Sobre o entalhe por exemplo, lascando e ouvindo o som do aço mordendo a madeira - o compensado, a cola “retirando o fio” e grudando nas partes íntimas do instrumento podemos perceber, pelo desenho, pelo trabalho do gravador que cria com a ação violenta do corte delicadas paisagens e importantes figuras, demasiadamente imensas para os espaços da mente, revelando a arte, a fantasia no “taco”, gravada entre espaços vazios dos veios (a respiração da alma vegetal), o movimento de um pensamento abençoado em direção a uma espécie de religiosidade presente na matéria que gera formas, que faz da matriz, portadora de uma semente.
Sua “parcela de culpa”, seu deslize encontra-se ora na técnica ora no tempo, disponível para assimilar a sutil relação entre técnica e o pensamento (o conjunto elaborado no ateliê entre o esforço físico e mental para superar as dificuldades colocadas pelo corpo) e pelo tempo. Tempo que pelas mãos principalmente, armazenam certa familiaridade com o instrumento.
Os dedos de fato, podem “pensar”.
Muitas vezes (e isso eu esqueci de mencionar) surge de forma autodidata.
A arte, fruto de uma organização espacial e instrumental aliada ao “meio” escolhido, a fantasia e a complexa carga de conhecimentos infernais que produzem uma estranha audição dos materiais que se comunicam via durabilidade. Os meios falam pela permanência na tradição. Dizem em - si São delicados, perturbados e acessíveis ao tato. O “meio” funciona como cordas, como tendões que regem um piano, tocam violões, imprimem gravuras, concertam a solas de sapatos com maestria. Desmontam máquinas de escrever e enlouquecem uma mulher na rua, tomado por monóxido de carbono. O ouvido absoluto responde ao espírito com o dom.
A produção de xilogravuras por pontos e rios de luz na obra do Ernesto Bonato por exemplo, existe arte, muito pura, (beirando um precipício de modéstia). Considero arte como pura a tentativa, o respiro honesto pela forma apreendida em determinados momentos de luz, na vida de uma pessoa.
Existem fossos em torno do que ela realmente significa e constrói até, por certo, no comum das atividades do dia a dia.
Mas, a dissolução desta palavra (que de alguma forma segrega potencialidades?) se expõe na rede do povo e se conserva, e se renova ao redor da coragem de se manifestar pela originalidade, seja em condições favoráveis ou não como por exemplo; o pernambucano Zé do Peixe.
Ele quando criança, nadou de um braço de mar ao outro arriscando a própria vida por um desejo motivado apenas, pelo amor ao mar. Um corpo pequeno que pôde, pelo “dom”, ou por pura traquinagem, flutuar e nadar, corromper e cortar a correnteza feito um peixe. Virou Prático no porto, melhor do que muitos rebocadores, analisando o melhor caminho entre os recifes para o navio de carga passar. Isso, vamos deixar claro, nadando... aos 80 anos!
A história fantástica do Zé do Peixe, uma reportagem interessante que saiu na revista Simples, indicada pelo gravador Fabrício Lopez e que escrevemos, ilustramos na última lâmina do álbum indica o misterioso acesso as virtudes.
São histórias que transformam o corpo, a mente e as mãos na cultura do homem que vive a arte em sua plenitude comercial quase, eu digo quase fantasiosa por que, em geral, o que pesa é o dinheiro para pagar suas contas no final do mês e a rapidez, eficácia e qualidade do serviço, uma espécie de “gravura política expandida, necessária.
Entendendo a gravura como “aquilo que se grava no espírito” – matriz – coração – produto – realidade e comunicação com o arquivo cortante dos pés em frente ao choque, a paisagem vivenciada com intensidade – surpresa no rosto, olheiras nos olhos. Uma alegria / tristeza presente, em cada visita, em cada estabelecimento escuro, um reconhecimento tardio. Ser reconhecido apenas pela comunidade do bairro, para muitos, em lugares de fundo de quintal é um começo de vitória.
Muitos estão na margem de um sistema artístico contemporâneo de larga escala e pensam a arte contemporânea como aquilo que faz parte do dia a dia das pessoas, da consciência via imagem localizada nos autdoors ou no lixo, na gama de revistas consumidas ou nos belos sapatos engraxados na rua; como complemento de uma atividade rica de um pensar e um fazer, livremente.
Eles estão presentes como glóbulos vermelhos, milhares no sangue, nas ruas, nas entranhas - estabelecimentos sombrios e solares desta cidade.
Porém, uma estranha liberdade consciente é encontrada nos elementos de sua arte, que participam – ativam o sangue, a esperança (diga-se dinheiro) e constroem conexões próprias com o caráter, moldado entre a juventude – inexperiência, maturidade – conhecimento puro – simplesmente útil e velhice – plenitude de um estado espiritual muitas vezes corrompido pela sonolência do próprio artista, dos fatos ao seu redor, da ignorância frente a transformações vitais, estando solitário, decadente, irritável, inconformado, mas firme ainda, visando nos casos mais tristes o fim de sua profissão por que não possuem MERCADO ou ele não percebeu a rápida mudança do MERCADO. Transformações sociais são a tal ponto tão rápidas e é claro, o trabalho que estes artistas fazem, no geral, é tão lento que, os sonhos migram, transformam-se no granito da decepção recorrente que, em muitos dos entrevistados como o próprio senhor Lau, querem desistir do negócio, abandonar tudo e voltar para o nordeste.
Sérgio Duarte – ferramenteiro por décadas supriu de excelentes ferramentas de corte centenas de gravadores do Brasil, sentiu sua saúde balançar.
Ele desistiu do negócio, de sua arte por que, literalmente estava sendo consumido pela fornalha, que exala uma fumaça tóxica, negra, (medieval nos pulmões) tendo como rotina o tempero do aço no sebo de boi, limando, sebo de boi, água – fumaça, martelada depois, despejando no fogo, martelada, marreta, bigorna, marreta, marreta, martelada, água, fogo. A sua voz é rouca, quase um sussurro e senti nesta voz arrastada um gorgolejo da morte, o som do ferreiro que certa vez, fez a foice.
O som de um homem que quer definitivamente se recolher para dentro do ateliê, entalhando apenas molduras, longe do aço puro, mas em contato com a vida, presente na madeira,fugindo da escuridão da forja.
Amaral, o entalhador de animais está esquecido, ou melhor, é lembrado apenas pelo dono da madeireira com a qual ele troca as peças, por mais madeira. As vezes pede dinheiro. Ainda produz num quarto minúsculo os pequenos animais (cavalos, cachorros, bois, cabras) em cedro, que ele tenta assim, vender na rua na praça da República.
O ateliê é a marca de todas estas pessoas que precisam agarrar, precisam estar, olhar, sentir, destruir e desbastar via corte – montagem as suas peaças, ficando invariavelmente isolados, introspectivos, alisando o tempo.
O tempo aqui, acreditem, não é uma metáfora. Ele existe como uma entidade real que consome o artista tanto quanto ele consome o artista tanto quanto ele consome a madeira, ou a barba de um cliente irritado, na cadeira, em frente o espelho de um barbeiro ou a louca, que carrega sacos plásticos cheios de merda gritando absurdos, orando para os pássaros, proferindo até lascar a língua “que o mundo dos homens é a sua palestra”.
A rua é efetivamente o palco, um ateliê a céu aberto como eram as praças - palestras dos filósofos nas academias gregas, a cidade para alguns é um grande bálsamo, um prazer e fonte de inspiração irritante, uma escola ornada de colunas de concreto vivo, labirintos, vielas acinzentadas banhadas por chuva ácida que a noite brilham, feito estrelas, brilham como galáxias, cheias de aparelhos de TV (a torre de Babel de Cildo Meirelles).
O tempo consome, destrói, passa, como a palavra passa.
Com a idade, alguns artistas se tornaram células de uma artéria na cidade, desconhecidos mas cheios de pequenos e terríveis encantos por que eles, colocados a parte de um circuito externo, sendo populares – comerciais ou eles mesmos se afastaram desta corrente, viveram para a rua a arte entre espaços que são menores, muitas vezes do que um abraço.
Imagine, estenda os braços, este é o espaço exato de uma bancada de marceneiro, o ateliê onde o tempo cansado, sonhador, o corpo envelhecido pela força, energia que exerce diariamente, solitariamente, coletivamente, sobre o artista possa descansar e mergulhar no pó suas melhores marcas, talvez, num momento de descuido, mostrar-se com a palma aberta, para a leitura das mãos.
O tempo permanece presente nas bancadas das inúmeras lojas que visitamos em busca do desenho (aonde ele se encontra? Feito uma onça que desperta de sua caverna?) o desenho projetado inicialmente como uma marca (uma unhada na pele!) que de maneira alguma se apresenta pela pintura e sim, pelo corte.
O corte é o tempo impresso – registrado via força e acidente de trabalho em uma superfície rígida.
A pintura descasca – cai, vira pó, farelo na fachada dos prédios e nos estabelecimentos que necessariamente mudam. As cores destoam, desbotam do original com uma facilidade impressionante enquanto o corte, veja, já é original – em si, nutrindo a “força” (entenda aqui força como vontade de fender) em reunião – peso.
Resultado de uma ação externa bruta, constante, o corpo do tempo – um velho cheio de arestas e espinhos – pedras, placas, suor corrosivo, um animal despertado de um sono que de repente fere, rasga (para o gravador, a imagem de um Tigre Dente de Sabre), o artista contemporâneo popular precisa da matéria áspera, vulgar, lisa para se manifestar: máquinas, couro, parafusos, ferramentas, madeira, metal, água, lâminas como tesouras, giletes, navalhas e tecido, tinta sobretudo, papel, sorte, precisa da matéria ouvida, cantada, ministrada, lida, comentada, fofocada, panfletada, nutrida de senso estúpido pela realidade dos jornais e revistas; o lento desbaste moral entre as coisas que fazem da cidade uma grande banca de jornal de oportunidades.
Conferem ao tempo uma tradição, um percurso incisivo, próprio na sociedade.
O cartório do cotidiano respira cápsulas. O tempo é a oração do entalhador. De fato, ao trabalhar a madeira o gravador deixa na pele do tempo uma cicatriz. Conhecimento e tato fazem do artista que deixa marcas na madeira, um cosmo – vendedor, que possui no cerne das imagens, uma tênue lembrança da morte, uma ponte de cristal entre os desejos da juventude e os sonhos alcançados na velhice sobre o balcão.
Para o gravador, a bancada, uma matriz.
O tempo reservado ao trabalho é um conto para o corpo.
A árvore, como mencionei, é o ser vivo que cresce em função e em direção a luz. Entender a mística deste crescimento e a batalha em uma floresta entre as próprias plantas ainda menores, para se chegar ao sol, atravessando em silêncio a sombra durante anos, até alcançar o céu pode se relacionar com o trabalho de gravura e entalhe (primeiramente em madeira) na origem.
São processos de importância de um fazer que, como uma Sumaúma, a mais de 500, 600 anos ou mais, mantém uma estrutura, que basicamente é a mesma; corte, sulco, registros táteis em matrizes – objetos – amuletos, a transmissão de sementes vitais. A arte do desbaste é a arte do homem em destruir e violar o corpo e estruturas vitais pelo corte, em um cadáver (ou partes dele).
O lenho, os ossos, cascos de tartarugas, dentes de baleia e outros animais, chifres, marfim. Gravar, uma escrita incisão, informação, carregando a intenção e a cultura de alguém conectado com forças reais são importantes e representam o registro contemporâneo – fóssil de um saber, que persiste e que encanta, parte da massa de jovens artistas.
Uma ligação entre a morte e a revitalização de gerações pela passagem de objetos “mágicos” que se tornam vivos pelo corte, pelas mão do tempo, nas circunstâncias de compra e venda, de uma imagem?
19 fev. 2008
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